E quando amanheceu, mais cheia que antes a taça estava.

Sexta-feira, primeira hora da madrugada e alguns quebrados, o frio e a umidade se sobressaem quando em contato com a pele, entretanto, pouco me interessa o sensível.

Em breve terei de acordar, me ocorre porém, que nem na mais ambiciosa perspectiva me vejo sossegando para dormir. Meu peito palpita, meu coração cospe sangue, e o pulmão, repetidamente, solta e recolhe ar no ritmo de uma betoneira. Mas como dito, pouco me interessa o sensível.

Na minha mente questiono:

-Como pode? O racional bon-vivant, ortodoxo hedonista, do alto da lógica e armado de razão, se deixar fluir pelo que há de lírico e subjetivo, se deixar embriagar de beleza como um tolo romanzo de botequim?

Mas ora, o que há na questão que me tira o sono? Me permitirei explicar com o risco de não me fazer entendido.

Desde que Kant escravizou as mentes com razão e os objetos foram acorrentados à lógica, o que nos foi tirado? Como pode, criatura racional, que manipula o mundo ao ler do método, tanto se deixar sentir, na alma, na mente, no espírito, movimento que nada tem de real, mas que por alguns segundos, define o mesmo como um todo, como se toda a matéria fosse feita para abrigar aquela singela manifestação abstrata, amorfa e intensa?

"deslocamento atômico
para um instante único
em que o poema mais lírico
se mostre a coisa mais lógica"1

É quase como se por um segundo, a roda da história parasse, as categorias deixassem de se agitar em suas contradições e tese e antítese, ao invés de se tornarem síntese, coexistissem em unidade pacífica, perfeitamente estável, absoluta e… confortável?

Fazem anos desde a última vez que amei, mas desde então, por todas as pessoas que toquei, me apaixonei. 

Não sei se posso dizer por todos, mas há determinado momento em que o maquinário do corpo se torna só mais uma engrenagem do todo, “No seu passeio, ao contrário, ele está nas montanhas, sob a neve, com outros deuses ou sem deus algum, sem família, sem pai, sem mãe, com a natureza”2. Não se trata porém de um momento de êxtase, não há nele também qualquer dor, não é reativo, mas não é apático, não se trata de um estado de reserva3, nesse momento não se é blasé4 -melhor dizendo- mal acho justo chamar de momento, pois neles tempo não há, fenômeno não é, pois não ocorre, nessa condição se é não sendo, não se é pois tudo é, nada em si, nem para si, em relação a tudo de forma que os integra a ponto de não se relacionar com nada pois nada além há.

“O que deseja meu pai? Ele pode oferecer-me mais? Impossível! Deixem-me em paz”5

Peço perdão se compliquei, mas nunca me foi simples falar de amor, fiz toda essa esquizoperipateia6 para me fazer entender, que do ápice da razão, submerso no real, não posso mais do que supor o que é. Esvazia o peito na mesma medida que preenche (orgasmo asmático). Enfim, não creio que a esse ponto do que sinto a razão me traga qualquer utilidade, ferramenta enferrujada que com nada me arma.

Eu quero amar, não faço questão de ser amado, entretanto quero do auto do egoísmo  permissão para amar.

Já com a paixão é outra história, essa vem genuinamente ao toque de cada pele, não quero parecer um “Don Juan”, por isso justifico, me apaixonei intensamente por cada alma com quem meu caminho cruzei, não significa dizer que amei, e ao separar novamente esses caminhos, não desapaixonei, não se trata porém de um eterno desejo ao retorno, soa mais como admiração, mesmo as “más-paixões” me cativaram, cativam e me moldam, nelas fui, não fui, apropriei e destruí partes de mim, neguei a mim mesmo para me ser. Em todos os casos, para longe da razão, racionalmente, como eu me encantaria com síntese absoluta de uma personalidade inocentemente liberal, ou outra que não é fiel nem a si mesma, ou mesmo as “femme fatales” que tanto me cativaram? Como pode bon-vivant como eu cair de joelhos perante uma caricata femme fatale? Patético! Mas não me revolto de verdade, mesmo as paixões não retornadas não me magoaram, as que reciproca eram foram destruídas pela razão. // Nessa medida já perdi a estrutura do texto.

Eu queria ter feito um poema, eu era poeta, mas minha poesia morreu enforcada no próprio quarto, não consigo escrever mais desde então, sinto que já superei, mas porque busco outra musa então?

A ideia de que amar depende do sofrer sempre me soou estranha, delírio juvenil de um romântico feudal, odeio românticos aliás, no alto da minha razão sempre os ataco, desejo seu fim, infelizmente quando afogado no subjetivo sou o pior deles, nego o romantismo primeiro porque é irracional e depois porque não é subjetivo o suficiente, o fluxo de transmissão segue funcionando além da minha vontade, para no fim do processo eu concluir que falastrões são esses que se chamam de “últimos românticos”, o primeiro romântico ainda há de nascer, mas só depois que matar a razão. Nossos traços românticos tentam por justificar o injustificável, sacralizar o pecado. Clamo contra esses: -Embebede-se de pecado! Não justifique o amor, apenas deixe que seu corpo, máquina que é, capte-o e transmita-o. Nada vai doer pois somos projetados pra isso. Somos intrinsicamente aquele que amamos, amar o outro é amar a si mesmo.

Cai no sono com uma taça preenchida pela metade com vinho e quando amanheceu, mais cheia que antes a taça estava, além do vinho, 6 mortos, moscas lá eternamente repousaram, gosto de pensar que morreram embriagadas, como eu tanto tentara. Curiosamente nenhum espírito vi espumar ou transbordar de lá.

  1. Trecho da música/poema de Maurício Pereira, de título “Trovoa“, também popularmente interpretada pela banda Metá Metá ↩︎
  2. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo, p.12 ↩︎
  3. Conceito de Georg Simmel, estado de passividade em relação às “impressões”, mecanismo social de defesa decorrente da grande oferta de estímulos em um indivíduo da cidade grande, para maior entendimento ver: “As grandes cidades e a vida do espírito ↩︎
  4. Condição do individuo que se adaptou ao estado de reserva, para maior entendimento ver: “As grandes cidades e a vida do espírito ↩︎
  5. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo, p.12 ↩︎
  6. Acabei de inventar essa palavra, foda-se, depois explico. ↩︎

O texto produzido não tem caráter acadêmico científico e não se compromete com definições conceituais ricas e precisas, é apenas uma reflexão, um ensaio, descompromissado com qualquer analise epistemológica. Leia e interprete o mesmo como se interpretaria uma arte.

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