do afeto à repulsa

SOBRE O AMOR ROMÂNTICO (OU O AMOR ANTI-MATERIALISTA).
amor a si e supressão do outro

Acordei, eram por volta das 9 horas da manhã; O Sol, que passava pela fresta criada pelo movimento das cortinas, cegava meus olhos. Quando recuperei minha visão percebi que a mais bela mulher que há de ter existido compartilhava comigo o mesmo travesseiro, acordava ao mesmo tempo que eu o fazia.
Abrimos os olhos juntos, nos encaramos por frações de segundo, ela sorriu. O sorriso era doce, sincero, alegre... O lábio dela era hipnotizante, a forma como o cabelo dela caia pela fronha, estávamos tão próximos, lábios prestes a se tocar. Era como ter diante de mim a manifestação absoluta do belo, meu coração palpitou, vacilei um sorriso de canto de boca, evitei piscar para não perder um segundo sequer daquela experiência. O cheiro de moletom molhando que ambos exalávamos por tanto termos tomado chuva na noite anterior, ao invés de enojar, temperava a beleza do momento na medida que exalava experiência compartilhada,  aos poucos sinto um doce cheiro de café coado tomando minhas narinas, ela me olhava com o mais genuíno afeto e alguma subjetiva dose de desejo.

Amei e fui devoto a ela como nunca fui ou serei a ninguém, mas só naquela fração de segundo.

Encantado com a experiência do real;
Emoldurado pelo subjetivo sensível;
Caiu sobre mim a fagulha residual;
Do processo maquínico divino.

Eu não lembro o nome dela, não trocamos números ou arrobas, e nada me incomoda nisso.    

O relato acima é uma experiência relativamente recente minha. Após essa experiência levantamos, tomamos café e seguimos rumo nossas respectivas casas, nesse processo não nos comunicamos para nada além do utilitário e nada tem de estranho nisso, a final de contas, mal éramos conhecidos, nunca tínhamos nos visto antes e provavelmente não nos veremos novamente, isso não me dá qualquer ansiedade ou desconforto e imagino que a ela ainda menos importa isso. Apesar da intensa relação de troca e contato necessária para a manifestação desse fenômeno, tão marcado pelo sensível material da relação, não passa de uma manifestação do campo “ideal“. É um pouco sobre isso que quero brevemente tratar aqui, o processo como experienciamos o afeto, ou quase isso.

"Amo-te, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu - o objeto petit a -, mutilo-te"1

Temos fixado no nosso imaginário uma concepção de como identificar e tratar nossos afetos a partir de uma perspectiva romântica, saímos por aí a espera de encontrar no próximo um receptáculo do nosso “outro ideal“, não temos qualquer tendência a buscar no outro a realização da troca mas sim na aparente compatibilidade com nosso desejo especulativo.

Praticamos o amor como farsa quando tememos ele como é, tragédia. 

O problema do modus operandi romântico reside -creio eu- na retrógrada ideia de indivíduo auto suficiente, auto suficiente pois é completo em si, emana de si e pensa a partir da própria razão, razão essa -por óbvio- pura.
O sujeito que assim se vê, enxerga no outro, objeto, e impõe a esse o desejo último, manifesto por via da sua idealização, vê o outro como receptáculo das perversões de seu espírito.
Achei uma citação que o Žižek usa em Lacrimae rerum que explicita bem essa operação:

“O amor por uma mulher só é possível quando não leva em conta as qualidades reais desta, sendo capaz, portanto, de substituir a realidade física efetiva por uma realidade diferente e absolutamente imaginária. A tentativa de realizar nosso ideal numa mulher, em vez de enxergá-la tal como ela é, implica necessariamente destruir a personalidade empírica dela. Desse modo, essa tentativa é cruel para a mulher; é o egoísmo do amor que a ignora, e menospreza sua verdadeira vida interior. […] O amor é assassinato”2

Bem, de toda a afirmação só concordarei que “o amor é assassinato” mas a formulação expõe bem como se manifesta o alvo da minha crítica: [1] Anti-materialista (no movimento de destruição da manifestação empírica do próximo); [2] Objetificação do próximo (em um receptáculo do desejo do “amante”); [3] Egoísta (nessa lógica, é necessário se pressupor o amor como uma manifestação de indivíduo A para realização do indivíduo A, usando indivíduo B como ferramenta de validação do amor de A para A; se disfarça de amor ao próximo quando se trata de amor à si mesmo.).3

Podemos descrever o movimento do amor anti-materialista da seguinte forma:

Sujeito A deseja amar;
Sujeito A idealiza um amor ideal;
Sujeito A atribui amor ideal ao Sujeito B;
[3][Sujeito A primeiro amava, não Sujeito B, esse surge depois, ou seja, aqui, Sujeito B é instrumento do amor ideal de Sujeito A ]
Cria-se para Sujeito A um Sujeito B (ideal);
Contradição: Sujeito B (real) Sujeito B (ideal) X Sujeito B (ideal) depende de Sujeito B (real);
[2][Embora Sujeito B (ideal) e (real) não sejam compatíveis, para Sujeito A, Sujeito B (ideal) só pode existir através do uso de Sujeito B (real) como receptáculo]
Sujeito A percebe Sujeito B (real);
Sujeito A frustra-se com a incompatibilidade entre real e ideal;
Sujeito A pune Sujeito B (real);
[1][O caráter punitivo surge da tentativa de Sujeito A ignorar/destruir Sujeito B (real) ]
Contradição: Para Sujeito A amar Sujeito B (ideal) ele passa a odiar Sujeito B (real);
[1/2/3][O ciclo se fecha, Não há síntese que solucione o problema, o Desejo de A é ter B (ideal) e “matar” B (real)4: (1§ – A mata B (real)) Se A “matar” B (real) não terá mais receptáculo para B (ideal); (2§ A mata B (ideal)) Se A “matar” B (ideal) não terá amor, pois só há amor ao B (ideal), ao B (real) sobra repulsa; (3§ A mata B (ideal e real)) A única forma de superação é o abandono do processo, castração do desejo de amar ou reiniciar o processo com Sujeito C].

Podemos ver esse procedimento operando no relacionamento da trama do filme (500) dia com Ela5, no filme, se apresenta uma relação completamente idealizada pelo protagonista com a Summer, seu “par romântico”. Quando o filme mostra pela maior parte do tempo a visão do protagonista sobre a relação não é mostrado ao espectador a Summer (real), apenas as memórias que ele nutre perante a Summer (ideal). Quando o mesmo é obrigado a lidar com existência de uma pessoa de verdade, vivendo a vida que ele usa como receptáculo, ele frustra-se, passa a odiar a Summer (real). A relação dele perante ela é uma relação punitivista a partir desse momento, a frase “Eu amo a Summer” destacada no momento de máxima vivência dessa idealização, se torna “Eu odeio a Summer” quando a Summer que ele via como objeto, se manifesta enquanto sujeito.

Tom (protagonista) é um assassino. Tom narra a história calando e ocultando as manifestações de Summer enquanto uma pessoa que também estava lá, sentindo, vivendo e agindo por si. O indivíduo auto suficiente não enxerga o próximo como auto suficiente, a razão pura que ele manifesta sobre a realidade, por não se entender como reflexo da realidade, nega, mutila o real, faz de tudo para suprimi-lo. “Como pode a Summer ousar ser real e não se render a idealização imposta por outro?” é a linha de raciocínio comum a muitos jovens homens que assistem a obra e se revoltam contra o personagem a ser agredido por se libertar de seus grilhões categóricos.

Summer só era objeto perante Tom, Summer nunca deixou de ser sujeito para si, a imposição categórica idealizada de Tom não altera a realidade em si, só a perspectiva de Tom, e como toda a idealização (seja esse amor romântico, seja a mão invisível do mercado, são a mesma coisa) uma hora ou outra terá de lidar com a realidade material onde tenta se impor, mas a realidade material só pode ser destruída pela realidade material.

Os devotos da pura razão;
Jamais compreenderão;
Como é bela a paixão;
Quando supera sua contradição.
Quando ao invés de supressão;
Se encontra suprassunção.

Para o amor anti-materialista sustentar sua ilusão idealista ele precisa criar ódio materialista. Reside então, na tentativa de suprimir o real, o caráter punitivista do amor anti-materialista, esse, deseja destruir o real, para isso, precisa se manifestar no real, nesse caso através do seu oposto.

Não por acaso, a ideia de amor ligada ao que se chama de “família tradicional” esconde em si uma relação de violência, tanto psicológica quanto física. A estrutura patriarcal que se manifesta socialmente acolhe, contempla e incentiva esse tipo de relação, essa estrutura, hoje tão ligada ao cristianismo, subverte o segundo mandamento “Ame o próximo como a si mesmo” (Mateus 22:39) em “Ame a si em detrimento do próximo“. Cria-se uma relação de poder onde o homem impõe sua ideia em cima da mulher, se a mesma resistir, a pune violentamente, esse destrói a mulher real que ali vive, cala a mesma para contemplar nela um amor às próprias ideias e perversões dele (que mal sabe ele, não são tão originais e imanentes dele assim). Talvez por isso como pode ser percebido nas concepções desse amor idealista (em Lacan, Weininger, Žižek e Tom), há sempre também uma relação de gênero, “O amor por uma mulher só é possível quando não leva em conta as qualidades reais desta6, a mulher -para eles- é sempre objeto que se contemplado perde o afeto, o caráter real da mulher tem ser escondido, mascarado, suprimido. E “ai dela” se falar, reclamar, sugerir, e assim como eles, impor algo. Nesse momento para não assumir que o objeto deles é sujeito assim como eles exclamam: “deve estar louca!“. A mulher se impor -para esses- só pode ser um defeito momentâneo, a ser corrigido, materialmente.

Impõe-se sob a mulher (real) ser o mais próximo possível da mulher (ideal) no campo do real, odeiam lembrar que são pessoas, reais, orgânicas. Delas, temem a pele, temem o pelo e é um desespero se forem lembrados que essas sangram. Nesse sistema o homem odeia a mulher real, quer matá-la.

Me foquei a descrever essa mecânica em casais monogâmicos heterossexuais e cis-gênero pois é a estrutura onde isso principalmente se manifesta, justamente pela raiz ideológica de onde vem essa mecânica.

“Apesar de ser uma lei bastante completa e de já ter sido eleita uma das melhores leis do mundo, o Brasil ainda ocupa a 5ª posição no ranking dos países que mais matam mulheres.
Os últimos dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que, no último ano, tivemos 1.437 feminicídios, um recorde desde que os casos de assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres começaram a ser contabilizados como feminicídio, em 2015.
Não bastassem os casos de feminicídios, o ano passado também foi marcado pelo recorde de casos de estupro, com o número de 74.930 ocorrências. Destes, 56.820 foram estupros de vulneráveis, ou seja, pessoas incapazes de consentir um ato sexual, seja pela idade (menores de 14 anos), seja por alguma enfermidade ou deficiência. As principais vítimas foram do sexo feminino (88,7%) e, negras (56,8%), sendo que seis vítimas, em cada dez, são menores de 13 anos.”
7

Essa é basicamente a noção de amor burguesa, afeto do homem a si mesmo através da instrumentalização da mulher. Se manifesta portanto no campo ideológico e assim se é ensinado a amar, se oculta na fantasia social-ideológica do amor romântico uma contradição entre amor anti-materialista e ódio materialista.

Antes de Sujeito A criar o amor ideal, ou qualquer desejo especulativo, o mesmo foi ensinado a construir essa narrativa, ele não sabe que sabe, mas sabe. Justamente aqui opera a ideologia.

A constante tentativa de supressão da mulher real por parte dos homens, mesmo quando atinge os mais ultrajante crime é apresentado pelo espetáculo8 como mercadoria, envelopada por sua vez de narrativa romântica. Tenha o caso de Eloá por exemplo:

QUEM MATOU ELOÁ? (WHO KILLED ELOÁ?) dir. Lívia Perez

Acredito que dada a devida atenção ao documentário anexado esteja claro como se manifesta essa propagação ideológica. Um caso de extrema violência é descrito ao público como uma história romântica para que a mesma possa ser degustada como mercadoria que se por um lado opera a máquina do lucro do capital, por outro reforça o discurso ideológico inserindo essa narrativa repetidamente e mecanicamente no “consumidor” em forma de desejo, combustível da máquina-corpo, para que o sócios9 continue a operar.

A sociedade burguesa tornou -em nome do capital o amor em ódio, o sofrimento resultante desse ódio em mercadoria e o consumo dessa mercadoria em mecanismo de inscrição ideológico para que continuemos chamando de “amor” o que é ódio, repulsa. Acredito também que o que tem sido chamado de “amor” por todo esse ensaio, não seja por ninguém, quando exposta a sua forma operacional e suas consequências, considerado de fato “amor”.

//Considerações sobre a produção deste ensaio: A intensão primeira do ensaio era em um único e breve texto contrapor diferentes práticas e formas do que é chamado “amor” através de um exercício de análise do processo dialético de cada, não a toa o título original era “Metodologias dos Amores”. Acredito porém que tenha ficado claro que o rumo tomado foi outro, não por escolha mas por inevitabilidade, enquanto caracterizava a supressão do amor anti-materialista sob o “Outro Sujeito”/”Sujeito B” caracterizava-se ali uma operação que julgo descrever parcialmente a espinha dorsal de certas violências relacionadas a uma situação dita de “afeto”. Essa supressão entretanto, pode ou não ocorrer, pode ou não ser violenta e pode ou não ser voluntária mas como ficou claro, escolhi dar protagonismo para a relação homem-mulher “tradicional” pois essa -infelizmente- pelo seu caráter histórico estrutural, mais expõe os limites desse ódio inerente ao que tem sido chamado de afeto.

//Considerações sobre a produção dos próximos ensaios: Como devidamente colocado na consideração anterior a intenção original desse ensaio não corresponde a sua forma final, originalmente planejava contrapor esse amor anti-materialista com um amor materialista, contrapondo os caráteres de supressão e suprassunção, respectivamente. Provavelmente dentre os próximos ensaios retomarei esse tema buscando a abordagem original.

//Considerações ao leitores: O presente ensaio é um exercício, não tem caráter cientifico, acadêmico, nem nada semelhante como já está posto em diversas partes do site, entretanto, achei importante reafirmar isso visto que a obra PODE CONTER ERROS CONCEITUAIS E METODOLOGICOS e se observar o mesmo, por favor, me notifique disso, como sempre dito, é um “treino” e não a obra final.


  1. Jacques Lacan, The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis (Harmondsworth, Penguin, 1979), p. 264. [Ed. bras: O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 4. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.]. [In: Slavoj Žižek, Lacrimae rerum: Ensaios sobre cinema moderno (São Paulo, Boitempo, 2009) p. 22]. ↩︎
  2. Otto Weininger, Sex and Character: Authorized Translation from the Sixth German Edition (Londres/Nova York, Willian Heinemann/G. P. Putman’s Sons, s.d.) p.249. [In: Slavoj Žižek, Lacrimae rerum: Ensaios sobre cinema moderno (São Paulo, Boitempo, 2009) p. 22]. ↩︎
  3. Creio que aos leitores já seja suficientemente claro que a passagem citada, até por conta da sua lógica, é escancaradamente machista, o que não deve ser ignorado, mas creio que seja por muito consequência do que vou apresentar mais a frente do texto como o caráter punitivista do “amor” anti-materialista. ↩︎
  4. Pode-se dizer que o desejo de A é que B (real) se torne igual a B (ideal). Mas devido ao fato de B (ideal) preceder B (real) ambos não podem ser compatíveis (ideia não determina matéria, matéria determina ideia). ↩︎
  5. (500) Dias com Ela (500 Days of Summer), 2009 – Mark Webb ↩︎
  6. Otto Weininger, Sex and Character: Authorized Translation from the Sixth German Edition (Londres/Nova York, Willian Heinemann/G. P. Putman’s Sons, s.d.) p.249. [In: Slavoj Žižek, Lacrimae rerum: Ensaios sobre cinema moderno (São Paulo, Boitempo, 2009) p. 22]. ↩︎
  7. Coordenação Nacional do Movimento Olga Benário, Brasil é o 5° país que mais mata mulheres, publicado em Jornal A Verdade em 26 de setembro de 2023. ↩︎
  8. Consultar: Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo. (1967) ↩︎
  9. Consultar: Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Anti-Édipo. (1972) ↩︎

O texto produzido não tem caráter acadêmico científico e não se compromete com definições conceituais ricas e precisas, é apenas uma reflexão, um ensaio, descompromissado com qualquer analise epistemológica. Leia e interprete o mesmo como se interpretaria uma arte. (ler aba “sobre”).

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